Resenha escrita pelo jurista Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, e publicado pelo portal do ConJur, no dia 24 de dezembro de 2023.
Resenha escrita pelo jurista Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, e publicado pelo portal do ConJur, no dia 24 de dezembro de 2023. Confira aqui.
Legística é o campo do conhecimento social aplicado que estuda a qualidade das leis. É um dos temas centrais em Montesquieu, talvez um dos intelectuais mais ambiciosos de todos os tempos. O capítulo XXIX do “Espírito da Leis” trata precisamente da maneira de compor as leis, inclusive com tópico sobre a maneira ruim de fazer leis. Excertos desse livro muito citado, mas hoje pouco lido, podem ser temperados com a leitura de outros pontos deliciosos da obra, como os que tratam sobre as relações das leis com clima, religião, número de habitantes, uso da moeda. Para Montesquieu não há limites temáticos, e é de onde credito sua ambição intelectual.
O assunto também está em Jeremy Bentham (Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação), em Blanco de Moraes (Manual de Legística) e em Marcília Gema Córdoba (Racionalidade Legislativa). Entre nós, os trabalhos de Luís Fernando Pires Machado e também um livro conciso de Kildare Gonçalves Carvalho. A PUC-Minas, onde o assunto é muito estudado, tem cursos sobre o tema, com Luciana Costa e outros pesquisadores de primeira.
O pai fundador do assunto é provavelmente Platão. Em “As Leis”, especialmente no Livro IV, há fascinantes diálogos que tratam de preâmbulos, que comparam preâmbulos com os prelúdios musicais, bem com comparam legisladores e poetas, e também legisladores e médicos. Obviamente, os preâmbulos do mundo platônico em nada se comparam com os preâmbulos contemporâneos.
Retoma-se, nesse pormenor, discussão interessante, que tomou tempo e retórica do Supremo Tribunal Federal (ADI 2.076-AC), quando se discutiu a natureza do preâmbulo, explicitando-se que preâmbulos não constituem normas centrais de reprodução obrigatória nas constituições estaduais, carecendo de força normativa. Era o caso da invocação da proteção de Deus no preâmbulo de constituição estadual.
E também do ponto de vista prático o disposto na Lei Complementar n. 95/1998, que trata das técnicas de elaboração, redação e alteração de leis, com tópicos especiais sobre fórmulas de obtenção de clareza, precisão e ordem lógica na composição de textos normativos. Os decretos de complementação ajudam muito.
O livro central no assunto, hoje, parece-me, é “Argumentação Legislativa”, de Manuel Atienza (tradução de Diógenes Breda, publicado pela Contracorrente). A ConJur já publicou entrevista de Atienza, conduzida pelo competentíssimo pesquisador e professor André Rufino do Vale. Atienza é professor na Espanha, leciona e palestra também em várias universidades do mundo. Também fundamental é a leitura de “Curso de Argumentação Jurídica”, na tradução primorosa de Cláudia Roesler.
Em “Argumentação Legislativa” o autor esboça e apresenta uma teoria da legislação. O ponto central consiste na compreensão de uma racionalidade legislativa, dividida em cinco níveis. Atienza fala em racionalidades legislativas de feições linguísticas, jurídico-formais, pragmáticas, teleológicas e éticas.
No pano de fundo a preocupação do autor com a distinção que a ciência jurídica apresenta para com os planos da produção, da interpretação e da aplicação do Direito. Não são campos distintos e interdependentes. É nesse entrelaçamento que concorrem juízes, advogados, funcionários públicos, políticos e técnicos. Esses últimos compõem e aconselham na composição de normas; aqueles primeiros as aplicam no cenário de uma vida dramática e cheia de tensões. Alguns protagonistas têm mais força institucional. O que decidem transcende qualquer ponderação técnica. É o peso da caneta da toga. Pesadíssima. Mas essa opinião é minha, e talvez só faça sentido em nosso mundo jurídico, que Monteiro Lobato chamava de a “parasitalha de Têmis”. Um pouco agressivo, parece-me.
A leitura de Atienza mostra-nos que, no contexto da racionalidade linguística (também chamada de comunicativa-R1), há preocupação com a construção de uma mensagem (naturalmente, a lei) fluente entre o emissor (que inclusive pode ser o Poder Executivo) e o destinatário da norma (que inclusive pode ser o Legislativo, na hipótese de regra que suscite outras regras, ditadas por ele mesmo).
Na chamada racionalidade jurídico-formal (R2) o editor da lei deve ter a habilidade de inserir a regra em harmonia com todo o sistema jurídico da qual fará parte. A racionalidade pragmática, prossegue o autor, consiste na expectativa de que o destinatário da norma aquiesça com a prescrição (R3). A racionalidade teleológica (R4) busca confirmação dos fins sociais para os quais a lei se destina. Por fim, a racionalidade ética (R5) busca justificação com valores éticos dos destinatários.
A construção da lei sugere (e vive), segundo Atienza, uma “série de interações que ocorrem entre elementos distintos: editores, destinatários, sistema jurídico, fins e valores”. A compreensão teórica dos cinco níveis de racionalidade enunciados e explicados no livro é ferramenta para mediar essa série de interações.
Segundo Atienza, a dogmática jurídica surgiu historicamente em Roma, “com o aparecimento da figura do jurista, o que em vários aspectos significou a profissionalização das funções de interpretação, aplicação (e produção do Direito)”. Atienza refere-se às últimas décadas também nas quais emerge uma nova figura no cenário: o “drafsman”, isto é, o redator de normas.
O excerto sobre a racionalidade ética das normas é desafiador. Para Atienza, “esse nível de racionalidade desempenha uma função mais negativa do que construtiva (…) a racionalidade ética – ao contrário de outros níveis de racionalidade’ não produz nenhuma técnica legislativa específica: não há nenhum procedimento para alcançar a liberdade, a igualdade e a justiça através das leis (…)”. Para isso Atienza remete o esforço para os níveis de racionalidade comunicativa e teleológica.
Uma lei boa é lei de compreensão clara, precisa e imediata. Uma lei boa conforma-se completamente com as demais normas, discretamente, sem suscitar antinomias ou dúvidas mais sérias. Uma lei boa resolve problemas práticos. Uma lei boa atende aos fins aos quais se destina. Uma lei boa leva em conta suas bases de legitimação.
O livro de Atienza é de leitura e compreensão urgente aqui no Brasil. Um exemplo. Certo manual de órgão de controle chega a afirmar que “se a desídia for efetivamente desejada, haverá dolo, e a falta deixa de ser desídia para ser improbidade”. Isso significa uma penalização máxima, de demissão do servidor. A afirmação é oposta à lei de improbidade (Lei nº 14.230/2021), que exige dolo, que é, todos sabemos, uma vontade livre e consciente de praticar o ato (vide AgInt no REsp n. 1.620.097/MG, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 9/3/2021, DJe de 3/8/2021). A vontade livre e desejada equipara-se à vontade livre e consciente de praticar o ato, tão somente, se entre as duas situações houver um desejo também de tirar proveito, próprio ou para terceiros, em desfavor da Administração. A ilegalidade deve ser qualificada pela prática de corrupção, para esses fins. A lei poderia ter explicado essa nuance. Não o fez.
O exemplo acima reitera o problema gravíssimo da intersecção entre produção, interpretação e aplicação do Direito. A tese das cinco racionalidades é mecanismo para enfrentamento desse trilema. “Argumentação Legislativa” é um livro oportuno, necessário e esperado para o chamamento à ordem da barafunda que o direito brasileiro corre risco em se tornar (se já não o é). É um livro que fixa bem as fronteiras entre conceitos e concepções, o que o torna prático, instrumental, elástico e operacional.
Afinal, como diz o autor (na apresentação, e na orelha), “cometemos um erro ao escrever Filosofia do Direito somente para os filósofos do Direito (…) também se equivocam os juristas — em particular, os cultivadores da dogmática —,que não conseguem ver que, para eles, não pode haver nada mais prático, seja qual for sua noção de ‘prática’, do que a Filosofia do Direito”. “Argumentação Legislativa” é um livro que cumpre esse papel, desjudicializando a Teoria do Direito, a propósito de uma discussão de Atienza com Elias Díaz, seu professor e amigo, tão propícia ao urgente enfrentamento de nossos problemas.