Trecho de "Keynes em Bretton Woods", livro recém-lançado do economista e professor da Unicamp
No capítulo XXIV da Teoria geral, Keynes já clama por uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários, como forma de evitar os desatinos competitivos de “empobrecer o vizinho”. Isso significava facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito era evitar “ajustamentos deflacionários” e manter as economias na trajetória do pleno emprego.
Não surpreende que nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes tenha tomado posições radicais em favor da administração centralizada e pública do sistema internacional de pagamentos e de criação de liquidez. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial do pós-guerra. Para ser efe tivo esse controle envolveria provavelmente uma engrenagem de admi- nistração estrita do câmbio para todas as transações mesmo se o balanço em conta corrente estiver em geral aberto”.
Uma instituição supranacional – um banco central dos bancos cen-trais – seria encarregada de executar a gestão “consciente” das necessidades de liquidez do comércio internacional e dos problemas de ajustamento de balanço de pagamentos entre países, superavitários e deficitários. Keynes pretendia evitar os métodos de ajustamento recessivos e assimétricos impostos aos países deficitários e devedores por um sistema internacional em que os problemas de liquidez ou de solvência dependem da busca da “confiança” dos mercados de capitais.
As instituições multilaterais de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – nasceram com poderes de regulação inferiores aos desejados inicialmente por Keynes e Dexter White, respectivamente representantes da Inglaterra e dos Estados Unidos nas negociações do acordo, que se desenvolveram basicamente entre 1942 e 1944. Harry Dexter White pertenceu à chamada ala esquerda dos New Dealers e foi por isso investigado duramente, depois da guerra, pelo Comitê de atividades antiamericanas do Congresso. Seu plano inicial previa a constituição de um verdadeiro Banco Internacional e de um Fundo de Estabilização.
Juntos, o Banco e o Fundo deteriam uma capacidade ampliada de provimento de liquidez ao comércio entre os países-membros e seriam mais flexíveis na determinação das condições de ajustamento dos déficits do balanço de pagamentos. Isso assustou o establishment americano. Uns porque entendiam que esses poderes limitavam seriamente o raio de manobra da política econômica nacional americana; outros porque temiam a tendência “inflacionária” desses mecanismos de liquidez e de ajustamento.
Keynes propôs a International Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A International Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, ao qual estariam referidas as moedas nacionais. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções e aumentos das contas dos bancos centrais (em bancor) junto à International Clearing Union. Uma peculiaridade do Plano Keynes era a distribuição mais equitativa do ônus do ajustamento dos desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isso significava, na verdade, dentro das condicionalidades estabelecidas, facilitar o crédi- to aos países deficitários e penalizar os países superavitários.
O Plano visava a, sobretudo, eliminar o papel perturbador exer- cido pelo ouro – ou por qualquer divisa-chave – como último ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, mas também de evitar que a moeda internacional assumisse a função de um perigoso agente da “fuga para a liquidez”. Essa dimensão essencial do Plano Keynes é frequentemente obscurecida pela opinião dominante que sublinha com maior ênfase o caráter assimétrico dos ajustamentos de balanço de pagamentos entre credores e devedores.
No plano Keynes não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos: “Nenhum país pode permitir a fuga de capitais, seja por razões políticas, seja para evadir o fisco ou mesmo por conta de antecipações dos proprietários de riqueza”.
A referência às antecipações indica que Keynes implicitamente reconhecia a diferença de qualidade entre os títulos de riqueza denominados nas moedas nacionais e os carimbados com o selo da moeda universal: são substitutos imperfeitos. Diante da hierarquia de moedas – a moeda reserva é mais “líquida” do que as moedas nacionais –, o teorema da paridade descoberta das taxas de juros não funciona. Com mobilidade de capitais, os mercados financeiros prosseguem sem sustos na “arbitragem” entre juros internos e externos, sem convergência das taxas de juro, descontados os diferenciais de inflação esperada. No volume 2 de A Treatise on Money, Keynes afirma que, com livre movimentação de capitais, “a taxa de juro de um país é fixada por fatores externos e é improvável que o investimento doméstico alcance o nível de equilíbrio”, ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis.
A proposta, como já se disse, sofreu sérias restrições dos Estados Unidos, país que emergiu da segunda guerra como credor do resto do mundo e superavitário em suas relações comerciais com os demais. O enfraquecimento do Fundo, em relação às ideias originais, significou a entrega das funções de regulação de liquidez e de emprestador de última instância ao Federal Reserve. O sistema monetário de Bretton Woods foi menos “internacionalista” do que desejariam os que sonhavam com uma verdadeira ordem econômica mundial.
Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afir mação da hegemonia americana pela imposição do dólar – ancorado no ouro – como moeda universal investida na função perturbadora de re- serva universal de valor.
Reexaminadas à distância de mais de setenta anos, as concepções de Keynes e de Dexter White sobre as instituições e as regras que deveriam presidir uma verdadeira ordem econômica internacional parecem inspiradas em uma visão pessimista acerca das virtudes do mercado autorregulado e particularmente negativa em relação à movimentação livre dos capitais de curto prazo. Ainda que o sistema de regras e de instituições de Bretton Woods tenha na verdade se revelado apenas uma sombra da realidade imaginada pelos dois homens públicos, hoje ninguém discute o caráter singular do período de expansão capitalista do pós- guerra, até meados dos anos 1970.
O arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveu ao gesto de 1971 – a desvinculação do dólar ao ouro – e à posterior flutuação das moedas, em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 1970, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo e lançou os europeus na “desinflação competitiva”.
Desde os anos 1980, o Fundo empenha a alma – se é que tem uma – na abertura financeira. Sendo assim, as crises do México, da Ásia, da Rússia e do Brasil eram mais do que previsíveis. Só os tolos e desavisados – os ideólogos do baixo monetarismo – ainda teimam em ignorar que os sólidos “fundamentos” fiscais não são suficientes (e nem podem ser) para evitar um colapso cambial e financeiro depois de um ciclo exuberante e descontrolado de endividamento externo.
No caso da economia coreana, engolfada na crise financeira de 1997/98, os bons “fundamentos” contribuíram para construir as condições que levaram ao desastre. A “confiança” dos investidores levou à apreciação da moeda nacional, o Won, a déficits elevados em transações correntes e, finalmente, à “parada súbita” causadora da crise cambial e bancária. Às vésperas da crise asiática de 1997/98, a Coreia dispunha de condições fiscais impecáveis: superávit nominal de 2,5% e dívida pública inferior a 15% do pib. A missão do FMI, encarregada de analisar a si tuação da economia coreana, teceu loas a seus sólidos “fundamentos”.
Nas crises cambiais dos anos 1990, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os títulos do governo dos Estados Unidos ofereceram repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas. Assim, os tormentos da crise cambial e dos balanços estropiados de empresas e bancos foram reservados para os incautos que acreditaram nas promessas de que “desta vez será diferente”.
Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para “as assimetrias e riscos implícitos” no atual regime monetário internacional e nas práticas da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reação do governo Clinton – aconselhado por Robert Rubin e Lawrence Summers, conselheiros de Barack Obama – foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco.
A pretendida e nunca executada reforma do sistema monetário internacional, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar as conturbações geradas pela decadência americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização. Impulsionada pela “deslocalização” da grande empresa americana e ancorada na generosidade da finança privada dos Estados Unidos, o processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias “consumistas” americanas e a migração da indústria manufatureira para a Ásia “produtivista”. Não por acaso a China acumulou 4 trilhões de dólares de reservas nos cofres do Banco Popular da China.
Mesmo depois da queda do subprime, não será fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva. Em um primeiro momento, os déficits em conta corrente dos Estados Unidos responderam timidamente à desvalorização do dólar provocada pela afluência de grana nas reservas dos bancos e demais instituições financeiras. A política de inundação de liquidez destinada a adquirir, sobretudo, títulos de dívida pública de longo prazo (quantitative easing) impulsionou, primeiramente, a desvalorização do dólar, mas afetou muito pouco sua utilização como moeda de denominação das transações comerciais e financeiras, a despeito do avanço do yuan nos negócios entre os países asiáticos.
Seja como for, a crise demonstrou que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais exigirá regras de ajustamento não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual, aí incluído o papel do dólar como moeda reserva. Isto não significa prognosticar a substituição da moeda americana por outra, seja o euro, seja o yuan, mas significa constatar que o futuro promete solavancos e colisões nas relações comerciais e financeiras entre as nações.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular aposentado da Faculdade de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capital e suas metamorfoses (UNESP).