O arquiteto da ordem jurídica moderna.
Na trajetória imbricada do pensamento jurídico ocidental, poucos nomes desenham com tanta nitidez a ideia de um direito apartado da moral e da política quanto o de Hans Kelsen. Nascido em 11 de outubro de 1881, em Praga — então parte do Império Austro-Húngaro — e falecido em Berkeley, Califórnia, em 19 de abril de 1973, Kelsen dedicou sua vida à construção de uma teoria que fizesse do direito um objeto de estudo puramente científico. Não por mero tecnicismo, mas por um desejo de rigor lógico — quase matemático — em um campo dominado por paixões ideológicas e imperativos éticos ambíguos.
O jovem vienense e suas escolhas religiosas improváveis
Filho de uma família judaica, Kelsen mudou-se ainda pequeno para Viena, onde viria a moldar sua formação intelectual. Converteu-se ao catolicismo em 1905, em um gesto frequentemente interpretado como pragmático — prática comum entre intelectuais judeus da época. Mais tarde, aderiria ao protestantismo, e apenas no fim da vida retornaria à fé judaica, já como defensor do Estado de Israel. Suas conversões sucessivas, longe de indicar instabilidade espiritual, refletem o entrechoque de racionalidade e pertencimento que marcou sua trajetória.
Graduou-se em Direito pela Universidade de Viena em 1906, e tornou-se livre-docente em 1911, com a publicação de Problemas Fundamentais da Teoria do Direito do Estado. Essa obra já carregava os traços que iriam definir sua carreira: clareza conceitual, precisão terminológica e a recusa em misturar juízos de valor com categorias jurídicas.
A Teoria Pura e o sonho de uma ciência do direito
A mais célebre criação de Kelsen, a Teoria Pura do Direito, é uma tentativa radical de limpar o campo jurídico de toda influência externa — especialmente da moral e da política. Para ele, o direito deve ser analisado como um sistema de normas, organizado de maneira hierárquica, no qual cada norma inferior retira sua validade de uma norma superior, até chegar a uma “norma hipotética fundamental”. Esta, por definição, não é posta por nenhuma autoridade — é pressuposta — e constitui o fundamento último de validade do ordenamento jurídico.
É desse esquema que nasce a famosa pirâmide normativa — frequentemente atribuída a Kelsen, embora idealizada originalmente por Adolf Merkl — na qual o ápice valida os degraus inferiores. A construção kelseniana visava conferir cientificidade ao direito, separando-o da incerteza moral e da volatilidade política.
Entre Viena, Nova York e Berkeley: um jurista exilado
A vida de Kelsen foi marcada por deslocamentos forçados. Em 1930, com a ascensão do nazismo, o professor de Viena e ex-juiz da Corte Constitucional Austríaca foi expurgado do cargo. Sua fuga foi viabilizada por um simpatizante nazista que, apesar da ideologia, admirava sua obra. Vagou por Colônia, Genebra, Praga, até encontrar abrigo definitivo nos Estados Unidos. Lecionou na Universidade de Harvard e depois em Berkeley, onde finalizou a segunda edição de sua Teoria Pura do Direito.
Nos Estados Unidos, Kelsen conquistou respeito como jurista e como pensador político. Sua defesa da democracia, em especial no contexto do entreguerras, ganhou peso frente à ascensão do totalitarismo na Europa. Sua contribuição para a ciência política é menos celebrada que sua teoria jurídica, mas não menos importante: foi um dos primeiros a formular com clareza a necessidade de um tribunal constitucional como guardião da Constituição em uma democracia moderna.
Carl Schmitt e o duelo pela Constituição
Se Kelsen foi o arquiteto de uma jurisdição constitucional baseada na racionalidade e na técnica, Carl Schmitt, seu mais célebre rival, representava o polo oposto: o decisionismo político. No célebre debate sobre “quem deve ser o guardião da Constituição”, Schmitt defendia que essa função era política e caberia ao presidente do Reich — que não por acaso, viria a ser Adolf Hitler. Kelsen reagiu com firmeza, sustentando que o papel caberia a um tribunal constitucional composto por juízes, e não a um soberano.
Embora as ideias de Schmitt tenham prevalecido durante a ascensão do nazismo, a história posterior favoreceu Kelsen, já que seu modelo de controle concentrado da constitucionalidade foi adotado em diversas democracias do pós-guerra, incluindo o Brasil.
A modulação dos efeitos e a influência no direito brasileiro
Pouco lembrada fora dos círculos acadêmicos, uma das contribuições práticas de Kelsen teve enorme repercussão: a teoria da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Criada ainda nos anos 1910 e introduzida na Constituição Austríaca de 1920, a ideia permite que um tribunal constitucional module os efeitos de suas decisões, evitando insegurança jurídica. No Brasil, essa teoria só foi incorporada em 1998, com a Lei 9.868, artigo 27.
Críticas e legado
A obra de Kelsen jamais foi consenso. Acusado de ter excluído a moral e os valores do direito, foi criticado por jusfilósofos como Ronald Dworkin, que apontavam a necessidade de integrar princípios morais à interpretação jurídica. Mas o que seus críticos chamaram de frieza ou excessivo distanciamento, seus defensores consideraram como a maior virtude: um esforço por tornar o direito inteligível, preciso e funcional.
Mais do que um autor de manuais ou teórico do Estado, Kelsen foi um pensador sistemático em um tempo caótico. Um judeu perseguido que manteve a defesa da ordem. Um racionalista que atravessou o século XX tentando provar que o direito, ainda que humano, pode aspirar à universalidade.
“A teoria comunista do Direito”, pela primeira vez em português
Como parte de seu compromisso com a circulação de obras fundamentais do pensamento jurídico, a Editora Contracorrente publica A teoria comunista do Direito, de Hans Kelsen. Trata-se da primeira edição em português desse texto instigante, no qual o autor analisa a teoria do direito formulada por pensadores marxistas — de Marx e Engels a Pachukanis e Vichinsky. Kelsen deixa claro: não se trata do direito praticado em regimes comunistas, mas da teoria construída a partir dos princípios do comunismo. Com prefácio dos professores Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Pedro Serrano e Rafael Valim, a obra reafirma a relevância de Kelsen — autor incontornável para nossos tempos.
“A Teoria do Estado de Dante Alighieri”, a obra inaugural de Kelsen
Além de A teoria comunista do Direito, a Editora Contracorrente é responsável pelas edições brasileiras de outras obras fundamentais de Hans Kelsen, como A Teoria do Estado de Dante Alighieri — sua obra inaugural, publicada originalmente em 1905, na qual examina a concepção política de Dante com especial atenção às ideias de soberania, legitimidade e paz entre os povos — e Sociedade e Natureza: uma investigação sociológica, livro denso e pioneiro em que Kelsen investiga, com base em material etnográfico, a origem da separação entre natureza e sociedade na consciência humana. Essas publicações revelam facetas menos conhecidas do jurista vienense, ampliando a compreensão de sua trajetória intelectual e reafirmando o compromisso da Contracorrente com a difusão qualificada dos grandes clássicos do pensamento jurídico, político e social.
“Direito Público Austríaco: um esboço apresentado em perspectiva histórica”
Reforçando o projeto editorial de difundir obras essenciais do pensamento jurídico, a Editora Contracorrente, em parceria com o IDP, publica Direito Público Austríaco: um esboço apresentado em perspectiva histórica, de Hans Kelsen. Lançada originalmente em 1923, esta obra histórica e dogmática permaneceu inédita em todas as línguas latinas até agora. A edição brasileira, coordenada por Gilmar Mendes e Paulo Savio Maia, conta com uma tradução histórico-crítica do Professor Rodrigo Cadore — enriquecida por mais de 1.400 notas explicativas — e com o prefácio de Clemens Jabloner, renomado especialista no normativismo kelseniano, ex-Vice-Chanceler da Áustria e Presidente do Supremo Tribunal Administrativo do país.